terça-feira, 10 de junho de 2008
Gente de Olinda: Criador sem limites, Samico sonha com a pintura
Xilogravurista Gilvan Samico fará 80 anos no próximo domingo
Inés Hebrard, Isabella Valle e Milena Times*
Especial para o JC OnLine
Nascido no Recife em 15 de junho de 1928, Gilvan José Meira Lins Samico é personalidade marcante nas artes plásticas brasileiras. Com mais de 50 anos de carreira e às vésperas de completar 80 anos, um dos maiores xilogravuristas do País conta que tem o sonho antigo de pintar e que a gravura aconteceu por acaso na sua vida. "Eu não sei o porquê, porque eu deveria estar conformado em ser somente gravador. Mas eu lhe digo que tenho um certo ranço por não ser pintor", diz ele, famoso chato dono de um sorriso cativante e de um espírito muito vivo.
Para Gilvan Samico, o uso da cor é algo tentador e a pintura liberta essa tentação. "Até hoje (como gravador) eu uso a cor. Eu sinto necessidade de pintar", conta o pai de Luciana e Marcelo e marido de Célida . Iniciado em desenho, Samico participou na década de 50 do Ateliê Coletivo da Sociedade de Arte Moderna do Recife (SAMR), onde diversos artistas se reuniam para exercitar as artes plásticas e encarar desafios. "A gente vivia numa pindaíba danada", lembra Samico, "a gravura foi um negócio de Abelardo (da Hora), porque a gente não tinha dinheiro". A idéia era criar um clube da gravura, em que cada um criaria uma matriz periodicamente e eles buscariam sócios. Assim, Samico diz que se obrigou a fazer uma matriz. "Eu não queria fazer gravura, mas eu não queria dizer não. Então, cedi." Até aquele momento, Gilvan desenhava e já estava pintando, mas nunca se imaginou o gravurista que é hoje.
Viver das artes plásticas não é fácil e muitos desistem da carreira. "Por que eu vou ficar pintando, pintando, pintando, se ninguém compra meu trabalho? Você gostaria é que alguém se interessasse por isso", reflete, lamentando a falta de sucesso de suas pinturas.
A gravura foi acontecendo na vida de Samico. Quando criança, não vivia com lápis e papel na mão, mas, como não era um bom aluno, adorava as atividades mais artísticas da escola. Seu negócio era serrar madeira, bater prego, fazer carrinho, patinete, gaiola. Gostava de usar as mãos e sempre teve intimidade com a madeira, que hoje utiliza para fabricar suas matrizes.
Um dia, ainda pequeno, descobriu um caderno de desenhos jogado na garagem da tia e ficou "deslumbrado com aquele negócio", como ele mesmo descreve. Foi quando começou a desenhar, copiando capas de revistas, imagens de santinhos, tudo o que via. Aos 17 anos, Samico foi levado pelo pai para conhecer Hélio Feijó, arquiteto, artista plástico e, na época, presidente da SAMR, que disse para ele parar de copiar revistas e observar mais a natureza. A partir daí, ele passou a freqüentar a Sociedade de Arte Moderna, onde fez grandes amigos.
Indicado por eles, Samico estudou com dois dos mais conceituados gravadores do País, Lívio Abramo e Oswaldo Goeldi, quando decidiu se aventurar pelo Sudeste no final da década de 50. Eram as circunstâncias que traçavam seu destino. "No primeiro Salão que houve no Rio, eu mandei e aceitaram minhas gravuras. Você só falta chorar, né?". No outro ano, Samico enviou novamente suas gravuras e todas foram aceitas. A partir daí, ele começou a ser convidado para exposições coletivas no exterior. "Foram me aceitando como gravador e não tinha lugar pra ficar pintando. Tinha que trabalhar!". E ele foi sendo tomado pela xilogravura. Participou da Oficina Guaianases de Gravura, fundada por João Câmara, e virou o maior xilogravurista do Movimento Armorial. Hoje ele quase não pinta mais.
"Samico virou gravador, porque continuou aquilo que ele fez lá em São Paulo e eu abandonei, porque eu queria ser pintor. Naquela época, o Brasil era brilhante em duas coisas: gravura e desenho", lembra o pintor José Cláudio, alegando que Samico escolheu seguir essa tendência enquanto ele foi para a Itália estudar pintura. Mesmo indo de encontro com os primeiros desejos de Samico, o panorama artístico do Brasil é o maior beneficiado com o destino que fez do artista um grande nome da xilogravura.
"Eu também sou rei. Faço. Imagino e faço!"
RECONHECIMENTO - Pensar que Samico queria ser pintor, sendo tão bom e reconhecido gravador, levanta um questionamento sobre o reconhecimento da gravura como arte. O artista explica que essa "ponta" de frustração pode ser conseqüência de algum resquício inconsciente de um tempo em que a gravura foi considerada arte secundária, que surgiu e se estabeleceu por muito tempo na História com a finalidade de reproduzir. Livros eram ilustrados por desenhistas e pintores, que tinham sua obra reproduzida por gravadores, que a transformavam em talha para a impressão. "O camarada às vezes transformava uma coisa enorme em uma gravura que cabia na folha do livro! Reproduzia todas aquelas nuances, encontrava jeito de dar o tom geral do quadro através de cinzas e pretos", defende.
Com o Expressionismo, o gravador se tornou também artista: ele cria, desenha, pinta, grava e reproduz. "Eles (os expressionistas) conseguiram dar à gravura uma espécie de autonomia, de caráter de obra de arte". O famoso quadro O Grito, de Münch, por exemplo, também possui uma gravura de mesmo nome e feita pelo mesmo autor. "O meu complexo tá atenuado por conta disso. Eu não me sinto um serviçal, eu também sou rei. Faço. Imagino e faço!"
Por conta da sua história, a gravura ainda é uma arte polêmica. Seria cada uma apenas uma cópia, uma reprodução? Qual é a original? "Na verdade, são impressões, não cópias de outra gravura. Cada uma é um exemplar". E, feito à mão, ele dificilmente fica idêntico a outro. O tom das cores, a intensidade, o preenchimento dos sulcos, cada detalhe é que vem a tornar cada obra singular, dando à gravura o caráter da exclusividade da obra de arte.
AVE BICÉFALA - Em 1999, Samico reinventou seu trabalho: ele criou uma gravura mutante. Diz ele que foi para testar uma nova prensa, mas talvez tenha sido para dar a sua obra certas particularidades da pintura, que tanto o atrai. E só agora, quase dez anos depois, é que ele está imprimindo o inovador Ave Bicéfala.
Nessa gravura, que chama atenção por seu colorido, ele expõe um pássaro de duas cabeças e deixa por parte do cliente eleger as cores que preenchem alguns espaços, como a crista e a asas da ave. Em alguns outros locais, as cores são fixas e pré-estabelecidas por Samico (as cabeças, por exemplo, são sempre azuis). Contudo, a intenção dessa gravura é a de promover um intercâmbio de cores, uma permutação, com uma variação já prevista.
Samico tem a tendência de usar cores contidas, mas, nessa obra, ele se permite mudar. "Eu tou quebrando, tou fazendo uma gravura diferente da minha, ao mesmo tempo em que ela se identifica com meu trabalho... É uma doidice!". Segundo o gravurista, ele não tem muitas idéias assim, diferentes, mas as mudanças vão acontecendo e, mesmo depois de tanto tempo, ele ainda consegue inovar.
Ave Bicéfala, por ter uma dimensão menor que a maioria das gravuras de Samico, é mais barata, "mas tá me dando mais trabalho que uma outra, grande". Até agora, a gravura só havia sido impressa nove vezes, existindo ainda muitas possibilidades de novas colorações para a ave.
* - Do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco
http://jc.uol.com.br/2008/06/10/not_171125.php
.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário