domingo, 10 de fevereiro de 2008

Opinião: O bom carnaval, e o ruim

Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

"A prefeitura de Olinda, este ano, abusou em sua submissão a um fabricante de cervejas, deixando que a decoração da cidade - a qual, no Recife, punha o patrocinador em plano muito secundário - fosse dominada pelas cores da cervejaria. E em dose abusiva. Os moradores da cidade ficaram muito descontentes. Os amigos hospedados em minha casa evitavam tirar fotos para não ter que registrar a afronta que foi tanta propaganda de cerveja em lugar de um cenário efetivamente de Carnaval"

Cada vez mais, a ameaça de nivelação por baixo paira sobre o Carnaval. Aliás, de uma sociedade que tem o abominável Big Brother Brasil como referência não se pode esperar muito. Os próprios poderes públicos se dão bem com "heróis" do BBB, contribuindo para que eles se encham das mordomias que sabem distribuir, por exemplo, no desfile do Galo da Madrugada. Viu-se isso no Recife, e quase ninguém se aborrece com o fato. Na verdade, as práticas de exclusão que o sistema de camarotes carnavalescos leva a cabo refletem a natureza excludente do sistema social de que fazem parte. E oferecem a oportunidade de se identificar dois tipos de Carnaval em nosso meio: o bom e o ruim. O bom é esse que o povo mantém espontaneamente e que alimenta manifestações belíssimas como as dos maracatus rurais, cabocolinhos, afoxés, troças e blocos. Esse Carnaval bom foi promovido de forma admirável pelo governo pernambucano no palco armado no espaço do Fortim de S. Francisco,em Olinda, bem perto de onde moro. Os moradores, a princípio, ficaram temerosos de serem massacrados por barulhos musicais que, de vez em quando, se instalam ali. No entanto, o que se viu (e ouviu) foi o melhor que existe dos festejos do povo no período de Carnaval. Um espetáculo do mais alto nível abriu a série no dia 25 de janeiro, um pouco prejudicado por discursos inoportunos como o do prefeito do Recife, que não tem maior habilidade para falar em público e começou saudando uma por uma das "autoridades" que via no palco. Totalmente dispensável a aparição de Sua Excelência. Ainda bem que Ariano Suassuna, líder do processo, foi preciso e consistente no que disse.

Durante a semana pré, os espetáculos se sucederam no Fortim, culminando com uma orquestra de frevo de 560 músicos, na quarta-feira. Regidos de modo competente pelo maestro Ademir Araújo, os integrantes da orquestra provinham de vinte municípios pernambucanos, fato ressaltado pelo maestro, que aproveitou para exaltar o papel dos músicos como responsáveis pela vitalidade do frevo, exclamando: "Vocês são arretados". Muitas outras coisas brilhantes também aconteceram ali e em outros locais da folia. Um fotógrafo do Rio de Janeiro, Luiz Sombra, que almoçou em minha casa na Terça-Feira Gorda, disse que nunca tinha visto manifestação mais bonita e emocionante do que os maracatus rurais em Nazaré da Mata, na segunda-feira. Um casal de amigos, também do Rio (o médico Carlos Augusto Sabino e a socióloga Fátima Portilho), que se hospedou em minha casa desde a semana pré, ficou maravilhado diante dos maracatus de baque virado na Noite dos Tambores Silenciosos de Olinda, dia 29 de janeiro. Eu destacaria o encantador bloco Escuta, Levino, com sua excelente orquestra de frevo, seus passistas e palhaços "clóvis", uma criação de integrantes do Bloco da Saudade que sai nas quintas da semana pré. Para mim, é um exemplo do bom Carnaval. Neste ano, vale ressaltar as apresentações animadíssimas da original Orquestra da Bomba do Hemetério e seu criativo maestro Forró, uma coisa nova no cenário do frevo.

Para mim, o carnaval começou com o lançamento do belo livro Frevo: 100 Anos de Folia, publicado pela Prefeitura do Recife, com patrocínio da Petrobrás, em solenidade na Livraria Cultura no dia 8 de janeiro, quando a orquestra de Forró se apresentou num espetáculo didático excelente. O Carnaval ruim, todavia, tende a se alastrar. Homens urinando displicentemente continuam sendo vistos por toda parte em Olinda, numa afronta a nossos foros de civilização. Imaginem se essas pessoas costumassem urinar com a mesma desinibição nos jardins do Palácio das Princesas, na entrada da churrascaria Spettus, na calçada do aeroporto dos Guararapes, na escada rolante do shopping Tacaruna. Não é isso que nossas autoridades vêem em suas viagens à Europa e Estados Unidos. A prefeitura de Olinda, este ano, abusou em sua submissão a um fabricante de cervejas, deixando que a decoração da cidade - a qual, no Recife, punha o patrocinador em plano muito secundário - fosse dominada pelas cores da cervejaria. E em dose abusiva. Os moradores da cidade ficaram muito descontentes. Os amigos hospedados em minha casa evitavam tirar fotos para não ter que registrar a afronta que foi tanta propaganda de cerveja em lugar de um cenário efetivamente de Carnaval. Do mesmo modo, incomoda a multidão de pessoas paradas no meio da rua, bloqueando a passagem dos blocos, como na do Bonfim, em Olinda. De lá, os moradores são forçados a debandar porque não agüentam o carnaval ruim que lhes sobra. Pena. Que se faça prevalecer o bom carnaval.

http://www.pernambuco.com/diario/2008/02/10/opiniao.asp

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