domingo, 15 de junho de 2008

Gente de Olinda: Gilvan Samico - 80 anos



Meu trabalho é como um carinho na madeira

Inés Hebrard, Isabella Valle e Milena Times*
Especial para o JC OnLine


Gilvan Samico aparece na varanda de seu casarão, em Olinda. Desde as alturas, sério e seco, grita: "Hoje?! Né hoje, não. Voltem na quarta!" - e entra de novo na casa. Está brincando? Entreolhamo-nos até que o homem abre a porta, abotoando a camisa e nos convida a entrar. Brincava. A grande sala, repleta de xilogravuras e quadros, produz uma sensação entre intimidante e acolhedora, como o própio artista. Gilvan avisa que podemos falar "até do sexo dos anjos", mas não toquemos no assunto de seus 80 anos. Pronto: esqueçamos a idade, falemos de experiência de vida. Com propriedade e pragmatismo, sentado em sua cadeira de balanço e com os dedos manchados de tinta preta, Samico fala sobre os limites entre o artesão e o artista.

Samico, ninguém discute que você é um grande artista, inclusive erudito. Mas, por trabalhar com xilogravura, você também se considera artesão?
Sim. Algumas pessoas ficam surpreendidas quando eu digo que me considero artesão. Eu gosto de fazer coisas que não têm nada a ver com arte, gosto de consertar, de fazer coisa em madeira, que não é a minha arte. Mas eu também faço minhas matrizes. E, quando eu estou fazendo minhas matrizes, estou juntando madeira com madeira pra fazer uma tábua deste tamanho, aplanando, lixando. Aí eu estou sendo artesão. Artesão trabalhando para o que eu vou fazer de arte. Claro que, no momento em que eu faço meu trabalho, eu não quero contrariar o signficado da coisa: artesão, digamos, numa escala, estaria abaixo do artista. Artesão é como se não chegasse a ser arte...

O que faz alguém passar de artesão e chegar a ser artista?
O artista não fica só no objeto para uso. A arte não tem utilidade, a não ser para a gente pendurar na parede. Um artesão trabalha com utilitários: uma mesa, uma matriz...
Nós, artistas, sabemos que habilidade só não faz um artista. O artista é aquele capaz de acrecentar alguma coisa. Tem que ter algo mais, não somente de conhecimento, mas também inteligência (você pode ser um grande conhecedor de um assunto, sem ser inteligente). Quem lida com a arte sabe que você pode suprir o conhecimento pelo olho, pode ver o que não é aparência, começa a ver as nuances... O artista vê sem ter conhecimento ou, então, teve um conhecimento prévio e o aplica na hora de fazer.

Como o fato de você ser artesão se relaciona com o seu trabalho de artista?
Eu acho que ser artesão ajuda muito para você ser artista. Eu complemento meu trabalho de artesão com a minha veia artística, com essa coisa misteriosa que eu não sei o que é, de onde veio, nem pra que serve. Mas eu não preciso ser artesão para ser artista: poderia chamar um marceneiro e mandar fazer minha matriz. Mas, em vez de mandar fazer, eu faço. Então essa parte de artesão, que outro artista não tem, eu sei fazer, eu me preocupo com ela, com essa coisa que antecede.

Ser artesão é um diferencial na sua obra?
Quando era jovem, eu ouvia dos marceneiros que, depois de que a tábua tava montada, eles iam afagar a madeira. É um termo carinhoso, uma coisa que parte do coração... Para mim também, meu trabalho é como um carinho que eu tivesse fazendo com a madeira e falta isso em alguns artistas.

No trabalho com xilogravura, existe um processo que envolve o entalhe da madeira. Você considera que a obra é a matriz de madeira ou a impressão feita em papel?
Considero que minha obra termina na impressão. Não é necessário que estejam os 120 exemplares prontos. Mas, se você grava uma matriz, a gravura só vai ser terminada ao ser copiada porque até então é uma gravura, sim, mas precisa dessa complementação com a impressão. Enquanto é uma madeira talhada, trata-se de uma talha rasa e, ao meu ver, só se completa quando você termina o processo de impressão. Certamente, a matriz de madeira é tão importante do ponto de vista artístico quanto a gravura impressa. Sem a matriz, você vai imprimir o quê? Nada. A matriz é uma arte, sim, não deixa de ser, mas dentro daquele processo. Se você está fazendo gravura, isso subentende um rebatimento da coisa, seja num papel, num pano...

E quando, então, a gravura começa?
No meu caso, o trabalho começa quando você projeta essa gravura e esse é o projeto mais demorado. Eu desenho inúmeras vezes: sou capaz de criar um desenho em 20 dias, mas dificilmente me dou por satisfeito nesse tempo. E não gravo enquanto eu não estiver com a idéia toda pronta no papel. A cor vem depois. Mas o mundo das artes é muito complexo, tem várias maneiras de trabalhar, tem pessoas que acham que o importante é o resultado, e que não importa o processo. Tem artista que vê a madeira, risca e começa a cortar, como se ele já soubesse o que quer fazer no momento que começa a riscar a madeira. Eu não. Eu acho que é muito importante todo o processo. Se você não usar um processo com certa coerência, o resultado talvez seja incoerente. Esse não é um campo que a gente possa pisar com tranqüilidade.

http://jc.uol.com.br/2008/06/10/not_171135.php

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