segunda-feira, 4 de maio de 2009

O Dom do amor e da Justiça Social


por MARCELO SANTA CRUZ


Recém-nomeado pelo seu amigo, o papa Paulo VI, dom Helder Camara chegou para assumir seu lugar como 30º bispo e 6º arcebispo de Olinda de Recife no dia 12 de abril de 1964, um domingo de muita chuva. Eu tinha, então, vinte anos. Espremido em meio à multidão que foi recepcioná-lo na Matriz de Santo Antônio, saboreei cada palavra do corajoso discurso proferido por aquele cearense baixinho, magrinho, orelhudo, sorridente, grande orador, que emoldurava seus pensamentos com largos gestos dos braços e das mãos. Em sua mensagem, disse ele que era um nordestino falando a nordestinos com os olhos postos no Brasil, na América e no mundo. Um cristão dirigindo-se a cristãos, mas de coração aberto, ecumenicamente, para os homens de todos os credos e de todas as ideologias. Um bispo da Igreja Católica que, à imitação de Cristo, não vem para ser servido, mas para servir. Finda a cerimônia voltei para casa, em Olinda, levando comigo duas certezas. A primeira era que teríamos no novo arcebispo um aliado na luta pela volta do Estado Democrático de Direito, derrubado há onze dias. A segunda era que essa luta seria de curta duração.

Os moços são, por natureza, otimistas e idealistas.

Errei as duas previsões.

A ditadura se estenderia por duas décadas, ao longo das quais causaria tremendos danos políticos, sociais, éticos e culturais ao País, cujas profundas cicatrizes até hoje carregamos. E dom Helder Camara se transformaria não apenas em um aliado contra, mas, talvez, no principal opositor do regime militar que aqui implantou o arbítrio e a violência institucional. Mais do que isso, tornou-se o Profeta da Utopia, o Pastor da Liberdade, uma das maiores personalidades brasileiras do século passado, várias vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz. O Dom do Amor e da Justiça Social. O confidente, o parceiro atencioso, o autor de corajosas denúncias e ações em defesa dos perseguidos. Solidário bem de perto, por exemplo, entre muitos outros casos, ao drama vivido por minha mãe, Elzita Santa Cruz, que viu seus filhos e filhas serem presos, exilado, perseguidos, sequestrados, e um deles, Fernando Santa Cruz, desaparecer para sempre.

Eu mesmo viria a utilizar um manifesto de autoria dele, em minha defesa, em um dos inquéritos que respondi na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco. O processo se fundamentava no Decreto Lei 477/69, o famigerado “ 477” , que permitia o afastamento dos estudantes dos seus cursos, além de proibi-los de se matricular em qualquer universidade do País durante três anos (ao final, eu seria condenado). No manifesto ele se posicionava contra essa punição “anti-psicológica e revoltante”, afirmando que ela feria de cheio a Declaração de Direitos Humanos; teria efeito retroativo em matéria penal; era incompreensível, sobretudo em um país em que apenas se acham nas Universidades um (1%) por cento daqueles que ali teriam direitos de encontrar-se, anulava a autonomia universitária, obrigando os professores a trocarem a autoridade paterna por uma atitude policial; e golpeava vidas adolescentes, marginalizando os punidos ou impelindo-os para os descaminhos da radicalização e da violência”.

Hoje, parece pouco, mas era preciso muita coragem para erguer a voz dessa maneira contra os donos do poder no Brasil, em 1969.

Helder Pessoa Camara foi o décimo primeiro rebento de João Eduardo Torres Camara Filho, guarda livros, e de Adelaide, professora primária. Dos treze filhos do casal apenas sete “se criaram”, sendo que quatro deles, justamente os mais novos, se foram, um a um, durante uma epidemia de crupe, em 1905. Quando ele nasceu, em 1909, o repertório de nomes prediletos dos pais já fora utilizado nos filhos anteriores. Seu João foi, então, até a estante da sala, tomou um velho atlas geográfico e começou a folheá-lo, até se deparar com um ponto no norte da Holanda chamado Helder, que caiu no seu agrado. E para dissuadir Adelaide, que pretendia batizar o recém-nascido de José, argumentou que assim já haviam chamado um dos meninos que morrera, e isso poderia trazer má sorte...

Desde bem novo, Helder manifestava o desejo de ser padre, e de tanto ouvi-lo falar a respeito, um dia o pai o chamou para uma conversa. Ele teria entre 8 e 9 anos de idade. “Você sabe de verdade o que significa ser padre?”, seu João perguntou. “Uma pessoa que quer ser padre não pode ser egoísta, não pode pensar só em si mesma. Além disso, os padres acreditam que quando se celebra a eucaristia o próprio Cristo está presente. Você já pensou nas qualidades que devem ter as mãos que tocam diretamente o Salvador?” O pequeno, então, respondeu: “Se ser padre é como senhor está dizendo, é isso que eu quero ser”. E tanto fez que se ordenou sacerdote em 1931, com 22 anos, dois a menos do que exigia o direito canônico, o que somente foi possível mediante autorização especial do Vaticano.

Dois gestos feitos por ele, ao assumir a Arquidiocese de Olinda e Recife, são bons indicadores da sua personalidade e da linha que imprimiria à sua ação pastoral: mudou-se do Palácio dos Manguinhos para um humilde alojamento nos fundos da igrejinha das Fronteiras e dispensou o carro com motorista. A sua luta permanente pelos Direitos Humanos, contra as torturas, os assassinatos e os desaparecimentos forçados de cidadãs e cidadãos brasileiros, começaram a repercutir cada vez mais no exterior. Mais lá do que aqui, posto que, sob censura, os meios de comunicação estavam proibidos de falar no seu nome – a não ser para criticá-lo.

Pernambuco e o Brasil viviam um clima de efervescência política, principalmente no meio estudantil. Era a época das grandes manifestações, como a passeatas dos 100 mil, no Rio de Janeiro, e dos 25 mil no Recife. No Rio tombava o estudante Edson Luiz. E aqui, no dia 28 de abril de 1969, ocorria o atentado a Cândido Pinto de Melo, estudante de engenharia e presidente da União dos Estudantes de Pernambuco, perpetrado pelo CCC – Comando de Caça aos Comunistas. Cândido não morreu, mas as balas que levou o deixariam paraplégico.

No dia seguinte, um grupo de estudantes,no qual me incluía, fomos procurar o arcebispo. Queríamos lhe comunicar o ocorrido e pedir apoio para preservar a vida do nosso líder. Dom Helder, como era do seu perfil, nos ouviu pacientemente, disse que poderíamos contar com a sua solidariedade, e – para nossa surpresa – adiantou que já tomara conhecimento do atentado, e desde o dia anterior não havia parado de contatar com as autoridades exigindo providências. Já havia acertado até mesmo uma visita ao próprio Cândido, através de pessoas de seu círculo de amizades!

Ele próprio, porém, não se preocupava com segurança. A sua humilde residência foi metralhada mais de uma vez. E no dia 27 de maio daquele mesmo ano sofreria o mais duro golpe da sua vida de pastor: o assassinato, com requintes de barbaridade, do padre Antônio Henrique Pereira Neto, seu auxiliar direto e responsável pela Pastoral da Juventude – sendo Henrique mesmo um jovem de apenas 29 anos, queridíssimo da garotada do Recife. Mas essa ação brutal, que chocou Pernambuco inteiro, não o intimidou. Pelo contrário, fez com que a sua luta recrudescesse. E se o seu nome não saía na imprensa local, lá fora era cada vez mais conceituado e respeitado.

Em 1970, grupos de parlamentares da Holanda, Suécia, França e Irlanda, além de René Cassin, vencedor do Nobel da Paz em 1968, propuseram a candidatura de Dom Helder àquele prêmio, apoiado por cinco milhões de assinaturas de trabalhadores recolhidas pela Confederação Latino-Americana Sindical Cristã. Para os parlamentares irlandeses, “atribuir a Dom Helder o Nobel da Paz seria uma manifestação valiosa de solidariedade humana numa situação dominada pelo terrorismo e pela opressão”. Os suecos argumentaram que Dom Helder, “além de importante protagonista da não violência, exerce uma posição de liderança dentro da Igreja, ao mesmo tempo em que atua de maneira importante na luta pela obtenção de reformas sociais”. E destacaram seu papel no Concilio Vaticano II e em várias conferências internacionais. O próprio consultor do Comitê Nobel, Jakob Sverdrup, se manifestou favoravelmente, pois o prêmio “simbolizaria a luta para a melhoria das condições de vida por meios pacíficos”. Não obstante todos esses pareceres, o Nobel da Paz de 1970 foi surpreendentemente atribuído ao norte americano Norman Borlang, especialista em fisiologia das plantas, que realizara pesquisas sobre cereais para o Instituto Rockefeller do México...

O fato é que, enquanto os apoiadores da candidatura de Dom Helder se moviam aberta e publicamente, nos bastidores, à socapa, também corria uma sórdida campanha coordenada pela embaixada brasileira em Oslo, atendendo às determinações do governo do general Emílio Garrastazu Médici – tão eficiente que conseguiu inviabilizar a propositura. A existência dessa trama seria denunciada mais tarde pela rede de televisão norueguesa Norwegian Broadcasting (NRK TV), e comprovada com documentos.

A ação se deu em duas frentes: uma delas trabalhava para que os membros do Comitê Nobel votassem contra a premiação; e a outra, através de alguns jornais noruegueses, tentava criar uma corrente de opinião que legitimasse a rejeição do nome do arcebispo. Um dos artigos contra ele, por exemplo, assinado pelo jornalista Arild Lillebo, foi publicado no Morgenposten; e também no Brasil pelo O Estado de São Paulo, em 18 de outubro de 1970, com o título “Prêmio Nobel à Violência”. Segundo o autor dessa peça difamatória, dom Helder Camara teria sido um “camisa verde” na década de 30 – fascista, seguidor de Hitler e Mussolini no Brasil –, mas depois se orientara no sentido oposto e muita gente o considerava, então, comunista. Ele teria se transformado num admirador de Fidel Castro e adotado Ernesto Che Guevara e Camillo Torres como modelos... Estas acusações hoje nos soam ridículas; mas naqueles tempos conturbados do Vietnã, da Guerra Fria, e mal esfriadas as cinzas do Maio de 68, foram suficientes para empanar uma parte do brilho da candidatura.

A NRK TV também denunciou a atuação do sueco Tore Munch, que teria conseguido persuadir alguns dos cinco membros do Comitê Nobel a votar contra. Esse Munch era amigo pessoal e de pelo menos dois deles: Sjur Lindebralkke, na época o maior banqueiro da Suécia, presidente do Privat Bank de Bergen; e de Bernt Ingvaldsen, presidente do parlamento norueguês e vice-presidente do mesmo Comitê.

Insatisfeitos, os partidários da candidatura de Dom Helder a ratificariam nos três anos seguintes, e a imprensa sempre lhe dava destaque. Em 1973 era de novo apontada como a virtual vencedora. No dia 17 de outubro, porém, quando se preparava para rezar a primeira missa do dia, às seis da manhã, na igrejinha das Fronteiras, o Dom recebeu por telefone a notícia de que o Nobel da Paz daquele ano fora atribuído ao norte-americano Henry Kissinger e ao vietnamita Le Duc Tho, a dupla que negociara o fim da guerra do Vietnã.

Para ele, pessoalmente, essas derrotas nada significaram. Lamentou-as, é claro, pois as causas que defendia teriam ganhado muito com a vitória, mas jamais se deixou abater.

Em dezembro daquele mesmo 1973, quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos completava 25 anos – e, na contramão, o Ato Institucional N° 5 fazia seu quarto aniversário, no Brasil, – ele estava em Houston, nos Estados Unidos, e assim se pronunciou, numa palestra: “Quando se lê e relê essa Declaração, que é uma síntese dos mais altos e mais puros anseios da pessoa humana, verifica-se que todos esses direitos estão longe de se transformar em realidade (...). Ou esta Declaração é desprezada e vista com um papel a mais, entre tantas outras letras mortas; ou vira carne de nossa carne, sangue de nosso sangue, pedaço de nossa alma. Não temos o direito de simplesmente armar discussões amáveis sobre assuntos tão graves, para depois dar tudo em nada”.

Em nosso país, entre inumeráveis outras iniciativas, ele teve destacada atuação na fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB; na organização da Campanha da Fraternidade; no Movimento ano 2000 Sem Miséria, que inspirou os comitês e a bela e humanitária campanha do Betinho – Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria Pela Vida. Várias entidades não governamentais também foram criadas e até hoje trabalham sob inspiração dele, tais como: Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social – CENDHEC; Instituto Dom Helder Camara – IDHEC; Serviço Comunitário Justiça e Paz; Mulheres Contra o Desemprego; Igreja Nova; Pastoral da Juventude do Meio Popular – PJMP; e o Movimento dos Trabalhadores Cristãos – MTC. Pelo seu trabalho, sua dedicação, seu amor ao próximo e à Justiça, dom Helder Pessoa Camara tornou-se um ícone da Paz, da Esperança e da Cidadania não apenas em seu país, mas em todo o mundo. Plantou uma valiosa semente dos Direitos Humanos que germinou, tornou-se árvore frondosa, e continua dando bons frutos ..

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Marcelo Santa Cruz

Advogado e vereador em Olinda ( PT-PE) e

Coordenador Adjunto do CENDHEC.

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